quarta-feira, 3 de abril de 2013

Jean-Paul Sartre - DOS PRECONCEITOS


DOS PRECONCEITOS

Jean-Paul Sartre
Sartre tornou-se um dos maiores críticos do imperialismo francês, principalmente com relação à Argélia. Seus artigos e livros denunciando as atrocidades e, mais do que isso, procurando inter­pretar o domínio francês, valeram-lhe acerbas críticas. Mas, feliz­mente, sua voz foi ouvida por muitos. No trecho abaixo, extraído do prefácio que Sartre escreveu para um livro de fotografias de Henri Cartier-Bresson, sobre a China, podemos verificar a questão do preconceito contra os povos colonizados. O texto fala por si.
Na origem do pitoresco há a guerra e a repulsa em compreen­der o inimigo: na verdade, nossas luzes sobre a Ásia vieram inicial­mente de missionários irritados e de soldados. Mais tarde chegaram os viajantes — comerciantes e turistas — que são militares frios: o sa­que se denomina "shopping" e as violações são praticadas honrosa­mente nas casas especializadas. Mas a atitude inicial não mudou: mata-se menos frequentemente os indígenas, mas nos desprezam aos montões, o que é a forma civilizada de massacre; experimenta-se o aristocrático prazer de contar as separações. "Corto meus cabelos, ele trança os dele; sirvo-me de um garfo, ele usa palitos; escrevo com uma pena de ganso, ele traça sinais com um pincel; tenho ideias direitas, e as suas são curvas: você observou que ele tem horror ao movimento retilfneo, ele só é feliz se tudo vai obliquamente." Isso se chama o jogo das anomalias: se você encontra uma a mais, se vo­cê descobre uma nova razão para não compreender, dar-lhe-ão, no seu país, um prémio de sensibilidade. Aqueles que recompõem, deste modo, seu semelhante como um mosaico de diferenças irredu­tíveis, não precisa admirar-se, se eles se interrogam, em seguida, como se pode ser chinês.

Criança, eu era vítima do pitoresco: tinha tudo feito para tornar os chineses apavorantes. Falavam-me de ovos podres — eles os ado­ravam —, de homens cerrados entre duas pranchas, de música delica­da e dissonante. No mundo que me envolvia havia coisas e animais que chamavam, dentre todos, chineses: eles eram frágeis e terríveis, fiavam entre os dedos, atacavam por trás, explodiam-se repentina­mente em alaridos ridículos, sombras que deslizavam como peixes ao longo de um vidro de aquário, lanternas apagadas, requintes ina­creditáveis e fúteis, suplicas engenhosas, chapéus sonantes. Havia a alma chinesa, também, da qual me diziam simplesmente que é impe­netrável. "Os orientais, veja-você...". Os negros não me inquieta­vam; ensinaram-me que eram bons cães; com eles, permanecia-se entre mamíferos. Mas o asiático causava-me medo: como estes ca­ranguejos de arrozais que correm entre dois sulcos, como gafanhotos que se precipitam sobre a grande planície e devastam tudo. Somos reis dos peixes, dos leões, dos ratos e dos macacos; o chinês é um artrópode superior, ele reina sobre os artrópodes.

Sartre, Jean-Paul. De uma China a Outra. In: Colonialismo e Neo-colonialismo. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1968, p. 7-8.