sexta-feira, 20 de março de 2015

NADA DE NOVO NO FRONT




Erich Maria Remarque


Em 1929 era publicado, na Alemanha, o livro Nada de Novo no Front de Eric Maria Remarque. Trata-se de uma obra condenatória dos horrores da Primeira Guerra Mundial, escrita por um homem que serviu no exército alemão tendo sido, inclusive, seria­mente ferido. Remarque viu de perto o morticínio das trincheiras e seu livro exerceu profunda influência sobre o pensamento pacifista. Basta lembrar que foi proibido, na Alemanha, quando os nazistas assumiram o poder.


Os trechos selecionados procuram enxergar a guerra por um outro viés, através da ótica de quem esteve no front, ameaçado permanentemente pela destruição e pela morte. O autor, na caloria, fala às gerações futuras: ''Este livro não pretende ser, libelo nem uma confissão: apenas procura mostrar o que foi uma geração de homens que, mesmo tendo escapado às granadas, foram destruídos pela guerra.''


Através do relato do soldado Paul Báumer toma-se contato não apenas com os horrores da guerra mas, também, com os so­nhos e esperanças frustradas de toda uma verdadeira "geração perdida''.






Estamos no outono. Dos veteranos, já não há muitos. Sou o ultimo dos sete colegas de turma que vieram para cá.


Todos falam de paz e armistício. Todos esperam. Se for outra decepção, eles vão se desmoronar. As esperanças são muito fortes; é impossível destruí-las sem uma reação brutal. Se não houver paz, então haverá revolução.


Tenho catorze dias de licença, porque engoli um pouco de gás. Num pequeno jardim, fico sentado o dia inteiro ao sol. O armistício virá e breve, até eu já acredito agora. Então iremos para casa.


Neste ponto meus pensamentos param e não vão mais adiante. O que me atrai e me arrasta são os sentimentos. E a ânsia de viver, é a nostalgia da terra natal, é o sangue, é a embriaguez da salvação. Mas não são objetivos.


Se tivéssemos voltado em 1916, do nosso sofrimento e da força de nossa experiência poderíamos ter desencadeado uma tempestade. Mas se voltarmos agora estaremos cansados, quebrados, deprimidos, vazios, sem raízes e sem esperanças. Não conseguiremos mais achar o caminho.


E as pessoas não nos compreenderão, pois antes da nossa cres­ceu uma geração que, sem dúvida, passou estes anos aqui junto a nós, mas que já tinha um lar e uma profissão, e que agora voltará pa­ra suas antigas colocações e esquecerá a guerra... e depois de nós crescerá uma geração semelhante à que fomos em outros tempos, que nos será estranha e nos deixará de lado. Seremos inúteis até para nós mesmos. Envelheceremos, alguns se adaptarão, outros simples­mente se resignarão e a maioria ficará desorientada: os anos passa­rão e, por fim, pereceremos todos.


Mas talvez tudo que penso seja apenas melancolia e desalento que desaparecerão quando estiver de novo sob os choupos e ouvir novamente o murmúrio das suas folhas. É impossível que já não existam a doçura que fazia nosso sangue se agitar, a incerteza, o futuro com suas mil faces, a melodia dos sonhos e dos livros, os sus­surros e os pressentimentos das mulheres. Tudo isso não pode ter desaparecido nos bombardeios, no desespero e nos bordéis. Aqui as árvores brilham, alegres e douradas, os frutos das sorveiras têm ma­tizes avermelhados por entre a folhagem; as estradas correm brancas para o horizonte, os rumores de paz fazem as cantinas zumbirem como colmeias.


Levanto-me.


Estou muito tranquilo. Que venham os meses e os anos, não conseguirão tirar mais nada de mim, não podem me tirar mais nada. Estou tão só e sem esperança que posso enfrentá-los sem medo. A vida, que me arrastou por todos estes anos, eu ainda a tenho nas mãos e nos olhos. Se a venci, não sei. Mas enquanto existir dentro de mim — queira ou não esta força que em mim reside e que se cha­ma eu —, ela procurará seu próprio caminho.


Tombou morto em outubro de 1918, num dia tão tranquilo em toda a linha de frente que o comunicado se limitou a uma frase: "Nada de novo no fronte".


Caiu de bruços e ficou estendido, como se estivesse dormindo. Quando alguém o virou, viu-se que ele não devia ter sofrido muito. Tinha no rosto uma expressão tão serena que quase parecia estar sa­tisfeito de ter terminado assim.


Remarque, Erich Maria. Nada de Novo no Front. São Paulo, Circulo do Livro, s/d, pp. 223-24.






A VIDA (?) NAS TRINCHEIRAS


A Primeira Guerra Mundial apresentou duas fases bastante nítidas: num primeiro momento, a guerra de movimento, logo se­guida, devido ao flagrante equilíbrio entre os dois lados em luta, de uma guerra de posições fixas, em que as trincheiras tornaram-se comuns. Exércitos inteiros, contando com milhares de homens en­fiados em trincheiras, separados por alguns quilómetros de dis­tância, passaram longos meses tentando avançar algumas centenas de metros.


A trincheira, verdadeira marca registrada da Primeira Guerra Mundial, é o reflexo do impasse tático, do equilíbrio de forças e da supremacia defensiva. A vida dentro delas, através de relatos de soldados ingleses, franceses, alemães, etc., era um verdadeiro in­ferno. Ainda hoje, as descrições que nos chegaram causam espanto e horror ante o grotesco do espetáculo.


Os trechos selecionados revelam com clareza o cotidiano marcado pelo medo, pela fome, pelo desespero, pela nulidade da vida, em síntese, pela degradação moral a que chegou o ser huma­no. Mas, em um ou outro relato é possível, também, perceber que alguma solidariedade, independente da cor da farda que se está usando, ainda sobrou, talvez para lembrar que, apesar de tudo, os homens ainda eram homens.


1. "A mesma velha trincheira, a mesma paisagem, Os mesmos ratos, crescendo como mato, Os mesmos abrigos, nada de novo, Os mesmos e velhos cheiros, tudo na mesma, Os mesmos cadáveres no fronte. A mesma metralha, das duas às quatro, Como sempre cavando, como sempre caçando, A mesma velha guerra dos diabos." A. A. M Une: Combate no Somme)


2. "No alto, nas linhas incompletas, os rapazes ficavam a noite toda - tinha caído muita neve e a chuva completou sua evaporação em água. (...) Uma estaca de madeira ajudara a formar uma camada de terra sobre as paredes encharcadas e um homem pode orgu­lhar-se disso: parecer parte de uma trincheira. A chuva, a chuva impiedosa, ensopando e entorpecendo — e, assim, passar a noite inteira. (...) Acabo de chegar de um lugar onde jazem 50.000 corpos, ossos e arame farpado por toda parte. Os próprios es­queletos embranqueciam se alguém saía pela colina terrivelmente atacada e destroçada. Botas e ossos saindo pelas paredes do abri­go da gente e, no entanto: lá se é feliz." (Sargento Ernest Broughton)


3. "Ainda estou atolado nesta trincheira. (...) Não me lavei, nem mesmo cheguei a tirar a roupa, e a média de sono, a cada 24 ho­ras, tem sido de duas horas e meia. Não creio que já tenhamos começado a rastejar como animais, mas não acredito que me ti­vesse dado conta se já houvesse começado: é uma questão de somenos."


(Capitão Edwin Gerará Venning, França)


4. "As rações chegam às trincheiras inglesas em pacotes de dez, em mulas, e então são levadas adiante por mulas humanas. Não foi trazida água, mas o gelo, das crateras formadas pelas bombas, foi dissolvido para esse fim. (...) Logo passou-se a usar um machado para encher os caldeirões com gelo e obter grandes quantidades de água. Nós a usamos para fazer chá durante vários dias, até que um cara notou um par de botas plantado (...) e descobriu que elas estavam enfiadas em um corpo. (...) Em geral, para dormirmos aquecidos, deitávamo-nos uns junto aos outros, dividindo os co­bertores — cada homem levava dois. O frio, no entanto, se mos­trou preferível à lama (formada com o degelo). (...) Pelo menos, podíamos nos mover." (Sargento E. W. Simon, rio Somme)


5. "O campo de batalha é terrível. Há um cheiro azedo, pesado e penetrante de cadáveres. Homens que foram mortos no último outubro estão meio afimdados no pântano e nos campos de na­bos em crescimento. As pernas de um soldado inglês, ainda en­voltas em polainas, irrompem de uma trincheira, o corpo está em­pilhado com outros; um soldado apoia o seu rifle sobre eles. Um pequeno veio de água corre através da trincheira, e todo mundo usa a água para beber e se lavar; é a única água disponível. Ninguém se importa com o inglês pálido que apodrece alguns passos adiante. No cemitério de Langermark os restos de uma matança foram empilhados e os mortos ficaram acima do nível do chão. As bombas alemãs, caindo sobre o cemitério, provoca­ram uma horrível ressurreição. Num determinado momento, eu vi 22 cavalos mortos, ainda com os arreios. Gado e porcos ja­ziam em cima, meio apodrecidos. Avenidas rasgadas no solo, inúmeras crateras nas estradas e nos campos." (De Um Fatalista na Guerra, de Rudolf Binding, que serviu nu­ma das divisões da Jungdeutschland.)


6. "Estamos tão exaustos que dormimos, mesmo sob intenso baru­lho. A melhor coisa que poderia acontecer seria os ingleses avan­çarem e nos fazerem prisioneiros. Ninguém se importa cónosco. Não somos revezados. Os aviões lançam projéteis sobre nós. Ninguém mais consegue pensar. As rações estão esgotadas — pão, conservas, biscoitos, tudo terminou! Não há uma única gota de água. É o próprio inferno!"


(De uma carta encontrada no bolso de um praça alemão na ba­talha de Somme)


7. "Ao ouvir alguns gemidos quando eu ia para as trincheiras, olhei para um abrigo ou buraco cavado ao lado e achei nele um jovem alemão. Ele não podia se mover porque suas pernas estavam que­bradas. Implorou-me que lhe desse água, eu corri atrás de alguma coisa e encontrei um pouco de café que logo lhe dei para beber. Ele dizia todo o tempo 'Danke, Kamerad, danke, danke' (Obri­gado, Camarada, obrigado, obrigado). Por mais que odeie os boches, quando você os está combatendo, a primeira reação que ocorre ao vê-los caídos por terra e feridos é sentir pena. (...) Nossos homens são muito bons para com os alemães feridos. Na verdade, gentileza e compaixão com os feridos, foram talvez as únicas coisas decentes que vi na guerra. Não é raro ver um sol­dado inglês e outro alemão lado a lado num mesmo buraco, cui­dando um do outro, fumando calmamente."


(Tenente Arthur Conway Young, França, 16 de setembro de 1916)


Roberts, J. M. (org.). História do Século XX. São Paulo, Abril, 1974, v. 2, pp. 796, 953, 960 e 961.